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THÉO BRANDÃO E A MEMÓRIA DO POVO ALAGOANO

Um homem dedicado à memória. O antropólogo Theotônio Vilela Brandão dedicou a maior parte da sua vida para a preservação da cultura popular alagoana. Como resultado de um extenso trabalho etnográfico, ele reuniu mais de três mil registros fotográficos, 200 documentos sonoros e variada documentação arquivística. Agora, o acervo que doou ao Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore está sendo revisitado. E, em breve, ficará disponível para o público

Por Elayne Pontual e Francisco Ribeiro



Ainda que tivesse confessado certa vez ao amigo Bráulio do Nascimento a sua indecisão em seguir a carreira como pesquisador da cultura popular, o médico, professor e folclorista alagoano Theotônio Vilela Brandão dedicou muitos dos seus 74 anos de vida à preservação da memória e do patrimônio cultural alagoano, nordestino e até mesmo brasileiro.

Franzino, filho de Manoel de Barros Loureiro Brandão e Carolina Vilela Brandão, Théo Brandão, como é mais conhecido, veio ao mundo prematuro, com apenas sete meses de gestação. “Esse menino não vai se criar”, afirmava a mãe, referindo-se ao recém-nascido. 

Filho e neto de senhor de engenho, ele teve seu primeiro contato com a arte popular ainda na infância. No Engenho Boa Sorte, onde passou boa parte da infância, ele presenciou as conquistas marítimas europeias dos séculos 15 e 16 através da marujada. Em outros momentos, durante a apresentação do reisado, o menino Théo podia contemplar reis, rainhas, Mateus e palhaços vestidos em cores variadas, com fitas e chapéus, cantando e dançando para anunciar a chegada do Menino Jesus.

As recordações dos momentos vividos na época de garoto foram ganhando cada vez mais espaço na sua memória particular. Aos poucos, ele compreenderia o papel daquelas lembranças para a construção da identidade do seu povo. 

No entanto, foi só a partir de 1937, aos 30 anos de idade, que Théo Brandão começou a aprofundar seus estudos sobre o folclore alagoano, ao assumir um cargo no Instituto Histórico de Alagoas. O resultado desse extenso trabalho etnográfico constituiu um dos mais importantes e expressivos acervos sobre a memória popular alagoana.

Colecionador de memórias

Ao longo da sua trajetória como folclorista, Théo Brandão fotografou mestres e apresentações de folguedos, gravou entrevistas, cantos e músicas, escreveu centenas de páginas sobre as expressões do folclore em Alagoas. Nesse percurso, em colaboração com outros fotógrafos e pesquisadores, reuniu um acervo de cerca de três mil fotografias em diferentes suportes, mais de duzentos documentos sonoros e variada documentação arquivística, composta por manuscritos, livros, folhetos de cordel e documentos pessoais.

O conteúdo desses materiais envolve registros fotográficos e sonoros de folguedos na capital e interior, em diferentes contextos, a exemplo das apresentações dos grupos de Cocos de Alagoas, da Chã Preta, Viçosa (1955); Fandango, da Pajuçara (1957); Guerreiro, da fazenda Boa Sorte, Viçosa (1961); Baianas, de Ipioca (1977), entre outros.

Ao registrar as manifestações, Théo Brandão realizava uma abordagem científica, citando autores e elaborando estudos comparativos entre as culturas. Segundo um de seus alunos e atual diretor do Museu da Imagem e do Som de Alagoas (Misa), Fernando Antonio Netto Lôbo, o antropólogo alagoano reconheceu que as manifestações folclóricas de Alagoas e do Nordeste são herdeiras de tradições culturais de outros países, como da Península Ibérica e também das regiões africanas, além da Oceania, da América do Norte e Central.  “Ele tentou compatibilizar essas manifestações. Um exemplo disso é o fandango, que faz sua trajetória contando a vida dos portugueses através dos mares”, diz Lôbo, que é considerado um dos “discípulos de Théo Brandão”. 

Além de pesquisador cuidadoso, o folclorista também era um colecionador, conforme revela o ex aluno: “Quando viajava para o exterior, ele trazia muita coisa relacionada aos povos, principalmente de Portugal. Livros da Europa, da América e especialmente do México. Todo o material estava armazenado em sua casa e já não cabia mais”. A filha mais nova, Válnia Brandão, também guarda recordações do hábito de colecionar do folclorista: “Minha casa era um verdadeiro museu. Minha mãe adorava isso e sempre dizia: ‘Não mexa nas bugigangas do seu pai’”, conta, recordando o tempo em que morava com os pais.

Percebendo o volume e a importância do seu acervo, o folclorista desejava ter um lugar onde todo aquele material pudesse ser preservado e disponibilizado para o público. Criado no dia 20 de agosto de 1975, o sonho do folclorista não só foi realizado como também recebeu seu nome. O Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore, pertencente à Universidade Federal de Alagoas (Ufal), abriga sua coleção de arte popular, além de uma biblioteca com todos os livros publicados por ele e títulos sobre cultura popular de outros autores.


Fachada da sede atual do Museu Théo Brandão, situado em frente à Praia da Avenida. O local guarda todo o acervo do folclorista alagoano (Foto: Divulgação) 

Acervo de valor inestimável é revisitado

Durante mais de 40 anos, Théo construiu um acervo tridimensional, composto por livros, fotos, fitas cassete, fitas de rolo e VHS. Toda esta documentação começou a ser trabalhada para estar disponível ao grande público, o que só foi possível graças ao Programa “Folguedos Populares em Alagoas: recuperação, disponibilização e pesquisa nos acervos sonoro, fotográfico e documental do Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore”, contemplado pela Secretaria de Educação Superior (Sesu) do Ministério da Educação (MEC), e desenvolvido pela Ufal através do Museu Théo Brandão.



 Parte do acervo que pertenceu à Théo Brandão. Na mesa, o gravador usado por ele para registrar as apresentações dos folguedos e fitas com a gravação do
folguedo Baianas, de Ipioca (1977), da célebre mestra Terezinha (Foto: Francisco Ribeiro)


À frente da iniciativa, está o atual Diretor Geral do museu, Wagner Chaves, a antropóloga e professora da Universidade Federal de Alagoas, Fernanda Rechenberg, e o bibliotecário e também professor da Ufal, Iuri Rizzi.

Com as atividades iniciadas em janeiro, o Programa inclui o projeto “Recuperação e digitalização de parte dos acervos fotográfico, sonoro e documental”. Para a coordenadora do trabalho de recuperação do acervo fotográfico, Fernanda Rechenberg, esse patrimônio revisitado fornece dados valiosos sobre os folguedos e a cultura popular alagoana em geral. 

“Esperamos que a vasta produção etnográfica – entre textos, registros sonoros e fotográficos – sobre o folclore em Alagoas, presente no Museu, possa mostrar a cultura popular alagoana em diferentes décadas, contribuindo para pesquisadores, estudantes, curiosos e, especialmente, os mestres e brincantes dos folguedos no Estado”, analisa. 


 Cerca de 20 bolsistas realizam as atividades de restauração do acervo sonoro, documental e fotográfico de Théo Brandão (Foto: Divulgação)

Para Wagner Chaves, o programa pretende recuperar, digitalizar e disponibilizar os acervos para que sirvam como suportes para o desenvolvimento e a continuidade de pesquisas na área. “Contribuindo assim para a valorização e reconhecimento tanto de Théo Brandão como etnógrafo e folclorista quanto dos detentores dos conhecimentos e das formas de expressões culturais tradicionais que ele pesquisou e documentou ao longo de sua vida”, pontua.


Para o atual Diretor Geral do museu, Wagner Chaves,  a digitalização e a disponibilização dos acervos poderão impulsionar novas pesquisas na área (Foto: Divulgação)

A baiana de Théo

Théo tinha grande interesse pelo povo e a cultura que deles emerge. Durante o processo de restauração, estão sendo encontrados diversos registros entre fotos e gravações em áudio das apresentações de grupos de folguedos e dos seus mestres, a exemplo da mestra Terezinha Oliveira, do folguedo Baianas, de Ipioca, falecida na década de 1980.

O que se pode concluir é que o folclorista compreendia a importância de não apenas documentar um folguedo, mas também de conhecer quem são aqueles mestres e dançantes que mantém viva a tradição da festa popular.

Théo Brandão e mestra Terezinha: admiração pelo talento
e dedicação da mestra para preservação do folguedo Baiana (Foto: Acervo Museu Théo Brandão)

Funcionário do museu desde sua fundação, José Carlos Silva recorda que a beleza, a simpatia e o talento a fizeram ser considerada uma das mais importantes mestras de folguedos em Alagoas.

 “Segundo o Dr. Théo Brandão, ela era a melhor mestra de Baianas da época. Mestra Terezinha cantava e tirava as toadas do folguedo muito bem. Ela visitava bastante o museu, colaborando com as pesquisas que eram realizadas sobre o folguedo das Baianas. A museóloga e ex-diretora do Théo Brandão, Cármen Lúcia Dantas, também tinha uma relação muito próxima com a mestra Terezinha”, lembra José Carlos Silva.

Até o momento, foram identificadas e catalogadas duas fitas cassetes, três fitas magnéticas de rolo, cerca de 25 fotografias e vinte documentos a respeito da manifestação. Os registros compõe uma parte do acervo do folclorista alagoano sobre as Baianas. Há ainda uma vasta documentação de outras manifestações populares, como, por exemplo, o Guerreiro, o Fandagos, a Chegança, o Pastoril e o Maracatu.


Amor à memória

Musa de muitos poetas, ela é sinônimo de lembrança, de saudades. Ela é cor, é palavra, é cheiro. Há quem goste de acordar a memória adormecida ou tentar mantê-la sempre viva. Há quem prefira esquecer, por achar mais saudável ou por não se importar. Simplesmente esquecer. Théo Brandão está no grupo dos que preservaram a lembrança, dos que lutaram contra o esquecimento.

“Nossos folcloristas, com poucas exceções, estão ajudando o Brasil a descobrir-se perante a si mesmo, enquanto formam uma obra de nacionalismo verdadeiramente sadio”, disse em entrevista ao jornal Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, em 1956. A afirmação mostra como Théo acreditava na contribuição da pesquisa sobre cultura popular e sua preocupação enquanto folclorista para que não fosse esquecida a memória popular.

O coordenador do Programa, Wagner Chaves, destaca a importância de revisitar o acervo que salvaguarda tanto a memória do folclorista, assim como a do povo alagoano: “Estamos vivendo um momento histórico. É um acervo de significado inestimável, contendo manuscritos, correspondências, gravações sonoras e fotografias originais de sua coleção. Dar um tratamento adequado a esse material vai permitir, futuramente, aos pesquisadores, o acesso à obra do mais importante folclorista alagoano”, garante. E.P.|F.R.