A POLÍTICA DO MESTRE GRAÇA
Passadas mais de seis décadas de sua morte, a obra e a vida de Graciliano Ramos nunca foram tão atuais. Um exemplo de gestor público, pautado pela honestidade, o romancista alagoano foi para a política local um suspiro de esperança numa terra afeita à corrupção, cujo exemplo mais recente são as denúncias de irregularidades na folha de pagamentos da Assembleia Legislativa (ALE), que somam mais de R$ 7 milhões. Por isso, nada mais oportuno do que revisitar a trajetória do escritor enquanto gestor da máquina pública e os ensinamentos deixados por ele aos que hoje estão à frente dela
Por Francisco Ribeiro
Naquela época, mestre Graça – como era chamado pelos amigos – escrevia artigos para o jornal O Índio, de Palmeira dos Índios. Em alguns deles, que foram reunidos na obra Garranchos, organizada por Thiago Mio Salla e lançada pela editora Record, Graciliano já imprimia sua opinião sobre problemas sociais e de outra ordem, ao tecer críticas contra os assassinos precoces, os altos índices de analfabetismo que assolavam a cidade e até mesmo a derrubada indiscriminada de árvores.
Empossado no cargo de prefeito aos 35 anos, Graciliano teve sua candidatura lançada pelo deputado federal Álvaro Paes e pelos irmãos Francisco e Otávio Cavalcanti. O trio liderava o Partido Democrata local. Outros fatores foram determinantes para seu ingresso na vida política, como um crime político ocorrido na cidade e a provocação de integrantes do Partido Conservador, que espalhavam boatos de que Graciliano teria medo de fracassar na função.
Escritor alagoano Graciliano Ramos (Foto: Divulgação) |
Sem participar de campanhas políticas ou fazer promessas, concorreu a eleição e venceu com 433 votos. “Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”, contou ele, em entrevista à Revista do Globo, em 1948.
“É preciso lembrar que, nas poucas vezes em que Graciliano Ramos ocupou cargos políticos, exerceu-os com tamanha lisura que, até os nossos dias, sua conduta honesta e correta na administração da coisa pública surgem, na imprensa do nosso país, como referência e exemplo”, afirma sua neta, Elizabeth Ramos, professora do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
RELATÓRIOS
No período em que passou à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos prestou contas de seu mandato por meio de dois relatórios, datados de 1929 e 1930. Ambos foram enviados ao governador do Estado e publicados no Diário Oficial do Estado. Escritos numa linguagem inusitada para textos dessa natureza, em especial, pela ironia e o tom coloquial contidos neles, os documentos tiveram repercussão nacional.
No primeiro texto, ele se refere aos gastos inúteis com telegramas: “Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1558 dom Pero Fernandes Sardinha foi comido pelos caetés”.
Em outra passagem, censura o modo de gestão municipal, e que ainda hoje continua atual: “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam”.
Graciliano critica também o número de cargos comissionados na prefeitura. Alguns funcionários, segundo ele, pouco contribuíam para a execução das atividades burocráticas do órgão. Sendo assim, reduziu a quantidade desses funcionários em sua gestão. Um exemplo de conduta à frente da máquina pública, mas que hoje parece ter caído em desuso. Haja vista que as denúncias feitas pelo atual deputado João Henrique Caldas, o JHC (SDD), em julho de 2012, apontam que a Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE) já gastou, só em comissionados, mais de R$ 7 milhões.
Fachada da Prefeitura de Palmeira dos Índios, que hoje tem 1.992 funcionários; na época de Graciliano, eram apenas 11 (Foto: Divulgação) |
Ao suspeitar de irregularidades durante seu mandato, Graciliano agiu de maneira irredutível. Um dos casos mais emblemáticos foi quando demitiu seu secretário de Finanças ao desconfiar de sua lisura no cuidado das contas do município. Só que o tal secretário era irmão do vice-prefeito, que prontamente foi até Graciliano reclamar da situação e dizer que, se o irmão saísse, ele sairia também. O escritor não se abalou. Decidido, continuou a governar sem vice-prefeito.
Com comentários em vários jornais do país e, às vezes, transcrições na íntegra dos relatórios da sua gestão em alguns deles, o romancista alagoano confessou ao jornalista e escritor Homero Senna a surpresa que tivera ao saber da notoriedade que os relatórios alcançaram: “Apenas porque a linguagem não era a habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e porque neles eu dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro”.
Numa dessas transcrições, o texto chega ao conhecimento do poeta Augusto Frederico Schmidt, dono da editora Schmidt. Admirado com a qualidade da escrita, o editor investiga se o alagoano não teria textos na “gaveta” e se oferece para publicar o primeiro romance de Graciliano, Caetés, o que só ocorre em 1933, três anos após lhe enviar os originais, pois Schmidt havia esquecido os originais no bolso de sua capa de chuva e não conseguia encontrá-los.
Para a escritora alagoana e professora aposentada do curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas, Vera Romariz, estudiosa dos relatórios de Graciliano, os documentos já traziam elementos que apontavam para a construção de uma obra autoral. “Ele propõe uma grande crítica às instituições que não conseguem desempenhar seu papel público. Obviamente, os resultados dessa análise seriam documentos bastante diferenciados, pois, para ele, essa tarefa não é uma simples ação burocrática, na qual seria engolido pela convenção ortográfica. É através de ambos os relatos que Graciliano dá o pontapé inicial para a construção de uma obra autoral em que linguagem e reflexão sobre o poder são permanentes”, analisa.
Ainda segundo Vera, o comprometimento com o social está presente em toda a obra de Graciliano, em especial, nos relatórios. “O homem, o ser político, não necessariamente partidário, comprometido com o público, já está presente nesses textos. Lendo atentamente, verificamos que ele faz uma crítica ao estado burocrático por não cuidar das pessoas menos favorecidas. A única atuação política de forma direta é como prefeito. No entanto, ele mesmo reconhece que não foi bem. Não era o lugar dele. O escritor luta com palavras”, pontua.
Escritora alagoana e professora Vera Romariz (Foto: Michel Rios) |
A PRISÃO
Em 1930, Graciliano Ramos aceita o convite do então governador de Alagoas, o amigo Álvaro Paes, para dirigir a Imprensa Oficial do Estado, em Maceió, que, muitos anos depois, receberia seu nome como homenagem. Para isso, ele renunciou à prefeitura, vendeu a loja que herdou do pai e partiu com a família para a capital. “Com a revolução, quis demitir-me, mas não pude. E lá fiquei até dezembro de 1931. Não suportando os interventores militares que por lá andaram, larguei o cargo e voltei para Palmeira dos Índios, onde, numa sacristia, fiz São Bernardo”, contou ele.
Pouco tempo depois, recebeu um convite do interventor Afonso de Carvalho para assumir a direção da Instrução Pública do Estado - órgão equivalente à Secretaria de Educação hoje -, retornando a Maceió em 1933. Nesse mesmo ano, seu primeiro romance é publicado e recebe elogios da crítica. “Caetés é um belíssimo trabalho, dos que mais me têm deliciado nestes Brasis”, escreve o crítico Agripino Grieco, no periódico carioca O Jornal.
Antes de terminar o seu terceiro livro, Angústia, o escritor alagoano é preso sem acusação formal no dia 3 de março de 1936. Levado primeiro para Recife e depois para o Rio de Janeiro, ele permaneceu detido na Casa de Detenção, junto a presos políticos, e na Ilha Grande, junto a presos comuns, até ser libertado em 13 de janeiro de 1937. Anos depois, ao ser questionado sobre a provável causa de sua detenção, responde: “Sei lá! Talvez ligações com a Aliança Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não existiam”.
Considerado como a vítima mais ilustre da repressão do Governo Vargas, ao que tudo indica, a prisão de Graciliano tem relação com as amizades que cultivava com pessoas que o governo considerava subversivas, como o jornalista e membro do Partido Comunista Alberto Passos Guimarães (1908-1993).
Durante o tempo em que ficou detido, Graciliano tomou nota de tudo o que viu e ouviu visando escrever um livro, no qual relataria aquela experiência. Certa vez, prestes a sair da Colônia Correcional Dois Rios, onde se encontrava encarcerado, mantém um diálogo com o médico e diretor da instituição onde deixa clara tal intenção:
- Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram.
- Pagar como? - exclamou a personagem.
- Contando lá fora o que existe na Ilha Grande.
- Contando?
- Sim, doutor, escrevendo. Pondo tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
- O senhor é jornalista?
- Não, senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a colônia correcional [...].
- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.
Pouco tempo depois, recebeu um convite do interventor Afonso de Carvalho para assumir a direção da Instrução Pública do Estado - órgão equivalente à Secretaria de Educação hoje -, retornando a Maceió em 1933. Nesse mesmo ano, seu primeiro romance é publicado e recebe elogios da crítica. “Caetés é um belíssimo trabalho, dos que mais me têm deliciado nestes Brasis”, escreve o crítico Agripino Grieco, no periódico carioca O Jornal.
Antes de terminar o seu terceiro livro, Angústia, o escritor alagoano é preso sem acusação formal no dia 3 de março de 1936. Levado primeiro para Recife e depois para o Rio de Janeiro, ele permaneceu detido na Casa de Detenção, junto a presos políticos, e na Ilha Grande, junto a presos comuns, até ser libertado em 13 de janeiro de 1937. Anos depois, ao ser questionado sobre a provável causa de sua detenção, responde: “Sei lá! Talvez ligações com a Aliança Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não existiam”.
Considerado como a vítima mais ilustre da repressão do Governo Vargas, ao que tudo indica, a prisão de Graciliano tem relação com as amizades que cultivava com pessoas que o governo considerava subversivas, como o jornalista e membro do Partido Comunista Alberto Passos Guimarães (1908-1993).
Durante o tempo em que ficou detido, Graciliano tomou nota de tudo o que viu e ouviu visando escrever um livro, no qual relataria aquela experiência. Certa vez, prestes a sair da Colônia Correcional Dois Rios, onde se encontrava encarcerado, mantém um diálogo com o médico e diretor da instituição onde deixa clara tal intenção:
- Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram.
- Pagar como? - exclamou a personagem.
- Contando lá fora o que existe na Ilha Grande.
- Contando?
- Sim, doutor, escrevendo. Pondo tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
- O senhor é jornalista?
- Não, senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a colônia correcional [...].
- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.
Conforme anunciado, o alagoano publicou o livro prometido, Memórias do Cárcere. A obra teve tamanha repercussão entre intelectuais, escritores e políticos que tornou o escritor um sucesso de vendas – foram vendidos cerca de 10 mil exemplares em apenas 45 dias.
A VIAGEM
“Uma vez posto em liberdade, outro tipo de luta teve que ser travada: a luta pela sobrevivência material, que se tornou possível com a produção literária em livros e jornais. Evidentemente, a experiência da prisão está refletida na sua obra, a começar pela impossibilidade de rever seu terceiro romance – Angústia – que saiu, segundo ele, com toda sorte de excessos e repetições”, revela a pesquisadora Elizabeth Ramos.
Colaborando com a revista Cultura Política por questões financeiras, editada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, de 1941 a 1944, Graciliano é criticado pelos esquerdistas - ainda que sempre tivesse preservado sua independência artística.
Em 1945, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), cujo Comitê Central o convida a fazer uma viagem pela União Soviética, Tchecoslováquia, França e Portugal para as comemorações do 1º de maio, Dia do Trabalho. Quando retorna ao Rio de Janeiro, traz na bagagem o rascunho de alguns capítulos do que será Viagem, seu livro de crônicas sobre a temporada no exterior.
Nele, o autor narra as impressões favoráveis e também tece críticas ao sistema político vigente na extinta União Soviética. A publicação dos originais enfrenta alguns empecilhos, pois o PCB insiste em censurá-los. Em 1954, a obra, enfim, chega às livrarias do país.
Ao tomar conhecimento de um informe produzido pelo PCB sobre literatura e arte, o qual pregava que uma obra de arte deveria trazer conteúdo que reverberasse os ideais comunistas, Graciliano alfinetou: “Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe”. A proposta de escrever um “romance panfletário” não lhe agradava. Afinal, enquanto homem, o escritor acreditava que poderia ter sua própria ideologia, mas sua literatura deveria ser livre.
A OBRA E AS HOMENAGENS
Fabiano e sua família de retirantes, os presos de Memórias do Cárcere, o menino de Infância, João Valério, Luís da Silva, e mesmo Paulo Honório compõem uma extensa galeria de personagens inspirados em homens à margem da sociedade, excluídos, para os quais Graciliano Ramos empresta a sua voz.No espaço autoral por onde transitam suas personagens, literatura e experiência, vida e obra se confundem. E é a partir desse encontro que a verve política de Graciliano desponta. O romancista alagoano destacou os problemas sociopolíticos do Nordeste – os quais muitos deles presenciou, como, por exemplo, a exemplo da vida cruel dos retirantes, os resquícios de escravidão e o coronelismo – por meio de uma escrita extremamente vigorosa e crítica.
Através de seminários, documentários, edições especiais de publicações e livros, Graciliano teve as suas trajetórias literária e política revisitadas. Ele também foi o autor homenageado na 11º Festa Literária Internacional de Paraty, evento literário considerado mais importante do país, que aconteceu no mês de julho. A programação não se debruçou apenas em sua à sua obra literária, mas também a seu legado e pensamento político.
“Na vida política dele, tanto como prefeito de Palmeira dos Índios e depois como secretário de Educação de Alagoas, já havia uma preparação para o que seria sua ficção. (...) Hoje, as pessoas estão indo para as ruas para tentar resolvê-las. A educação, por exemplo, era central na obra dele. Havia, por um lado, os Fabianos, e por outro o discurso pomposo do poder oligárquico e patriarcal”, disse Milton Hatoum, que foi responsável pela conferência de abertura da Festa, ao jornal O Globo.
Conforme observa a professora do curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Belmira Magalhães, toda a produção literária do escritor é política por denunciar as contradições do sistema, mas sem deixar de ser literatura. “Embora esteja falando do Brasil em seus escritos, especificamente, de uma realidade mais próxima à rural, ele discute questões ligadas ao gênero humano, à vida humana, só que a partir de uma realidade configurada como ele conheceu”, analisa.
Belmira Magalhães, autora da tese de doutorado intitulada “Vidas Secas: os desejos de sinha Vitória” (Foto: Michel Rios) |
Contrariando suas expectativas, hoje, Vidas Secas já está na 116ª edição – tornando-se, entre os livros de Graciliano Ramos, o mais vendido. Obra, que assim como as demais, perpetua a integridade política do mestre Graça. Não à toa, ele foi eleito o alagoano do século. F.R.